quinta-feira, 8 de abril de 2010

Reflexão inquieta sobre o ufanismo

Macksen Luiz, Jornal do Brasil
SÃO PAULO - Antunes Filho não se intimida diante do texto de Lima Barreto e volta às suas obsessões estéticas

Até o seu triste fim, Policarpo Quaresma experimentou, com patriotismo ingênuo, a amarga farsa do exercício da nacionalidade. Vítima de ilusão patriótica, adquire a consciência, herói ridículo da própria invenção de sociedade sustentada por suas raízes fundadoras, de sucessivas derrotas diante de um mundo que o transforma em bufão de suas idéias. O hospício, ao qual é levado por sua defesa da língua tupi-guarani, abriga a primeira decepção, seguindo-se a frustrada tentativa de reformar a agricultura, irremediavelmente vencido pela ação da baixa política e pela voracidade das formigas. Não menos decepcionante é sua adesão à defesa da nação, em revolta secessionista, quando fica frente a frente ao poder da corrupção e da comédia da artilharia. Deste percurso, Policarpo conclui que “fizera a tolice de estudar inutilidades”, e que a pátria é pouco mais do que uma quimera. O romance de Lima Barreto, lançado em 1911, trata de um anti-herói, patético em seus propósitos, risível nas suas inalcançáveis pretensões, que desfia fracassos como alguém que foi devorado por um Brasil real, pelo persistente país de fancaria.
A adaptação de Antunes Filho, em cartaz no Teatro Sesc Anchieta, na capital paulista, empreende retorno, “o eterno retorno” do diretor às suas obsessões estéticas e aos escaninhos da nacionalidade. É inevitável referenciar a atual montagem à de Macunaíma, que Antunes dirigiu há 32 anos. Se antes, o herói era desprovido de caráter, agora é íntegro, ambos identificados pelas semelhanças do país que os moldou. Se a cena de então determinava poética de brasilidade difusa, hoje se repete com o acréscimo de conotações mais palpáveis.
A transcrição do romance, essencialmente descritivo e com poucos diálogos, não intimidou o adaptador, que anteviu as possibilidades de enquadramento na sua rica moldura cênica. Há um tom farsesco, quase picaresco, que se destaca entre tantas outras memórias narrativas, criando humor em contraluz com lirismo. A movimentação dos atores, em conjunto e horizontalidade formal, é marca definitiva do diretor cultivada ao longo de várias montagens. A ausência de cenários, substituídos por adereços, figurinos, máscaras, maquiagem e máquinas de cena, individualiza o grupo, que em bloco ocupa o espaço com furor de personagem-massa.
Num desses “quadros vivos”, Antunes Filho reproduz com impacto visual e desenho crítico as obras pictóricas do positivismo, com sua exaltação à nacionalidade de estampa e de símbolos, e pelotões de vestais patrióticas e lábaros verde e amarelo. A imagética do diretor atinge o arrebatamento, quando ao som do Hino nacional, Policarpo sapateia como um alegórico dançarino de nossos males. A música, de modinhas, canções militares e valsa, é preponderante no estabelecimento desta atmosfera de brasilidade desiludida, de sonoridade arranhada pela rouquidão da desesperança, como revela o discurso final de Policarpo.
Nesta transcrição de Triste fim de Policarpo Quaresma por Antunes Filho, a sedimentação da gramática teatral do encenador respira por alguns novos poros, abertos pela inquietação de refletir sobre a nostalgia de um país, arduamente vivido, eternamente irrealizado. O bem orientado elenco realiza com a determinação do que lhe foi proposto a delirante e cética investigação sobre o que somos ou o que irredutivelmente fomos. A projeção, indiscutível, é do ator Lee Thalor, intérprete inteligente de Policarpo, macunaímica presença como artífice do desencanto.

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