quinta-feira, 29 de abril de 2010

Aos 80 anos, Antunes Filho defende papel de sua arte de formar consciências




O GLOBO - Marcia Abos e Gilberto Scofield Jr.



SÃO PAULO - Num dos pontos altos da peça "Policarpo Quaresma" - baseada no romance de Lima Barreto e que encerra a famosa "trilogia carioca" do dramaturgo e diretor Antunes Filho, iniciada com "A Falecida Vapt-Vupt" e "Lamartine Babo" -, o personagem principal, interpretado por Lee Thalor, executa um genial sapateado ao som do Hino Nacional. Ali, naquele domingo à noite no palco do Teatro Anchieta, onde a peça está em cartaz, o major Quaresma deixa clara sua inquietude com a ainda nova República, as formigas que destroem sua frustrada plantação e as tiranias e corrupções da política numa dança raivosa, revoltada e perplexa com o mundo à sua volta.
Na manhã do dia seguinte, no sétimo andar do prédio do Sesc Consolação, onde funcionam o teatro, o Centro de Pesquisa Teatral (CPT) do Sesc e o Grupo Macunaíma, todos sob o comando de Antunes, quem recebe a reportagem do GLOBO de jeans e camiseta de campanha ecológica é um senhor grisalho, alegre e sorridente, disposto a explicar sua trilogia de paixão pelo Rio e pelo teatro de maneira filosófica e incondicional. Mas se engana quem pensa que um dos mais ativos diretores brasileiros de sua geração é um suave e cínico encenador profissional. Bobagem. Aos 80 anos, Antunes Filho executa seu sapateado de palavras com as mesmas revolta, perplexidade e frustração que seu major Quaresma. Como da primeira vez em que trabalhou com grupos de teatro amadores, ainda na década de 1950.

- Eu odeio a ideia de envelhecer - diz ele, batendo na mesa. - Porque a missão do teatro não é só formar o público. É formar consciência também. Consciência de que este país anda em direções contrárias nas suas ambições culturais: financiando iniciativas culturais ao mesmo tempo em que despreza a educação de sua população. O ator e o diretor estão no palco para doar, e esse é o manto sagrado da criatividade. É preciso mostrar para essa gente quem é Lima Barreto porque a dramaturgia da TV é imediatista, busca audiência e presta um desserviço à cultura - dispara, como num sapateado louco.
Antunes Filho, no entanto, é generoso com o Rio, cuja memória ajudou a gestar sua trilogia. Diz que o público paulista precisa conhecer Nelson Rodrigues, Lima Barreto e Lamartine Babo, e que guarda boas lembranças de uma cidade onde desfilava com amigos como Clarice Lispector ("minha comadre"), Paulo Pontes, Antonio Callado e Vianinha. Lembra que o Rio era uma cidade onde ele dormia cedo. Quer dizer, de manhã cedo, depois de amanhecer após noitadas nos botecos da cidade.
- O Rio para mim é um local muito especial. Hoje em dia, não saio de São Paulo. Não é que eu não vá ao Rio para ir para Paris. Não vou nem a Paris. Mas o Rio era a capital federal, o centro do Brasil, para mim, o centro da América do Sul, e eu queria fazer uma homenagem que aconteceu quase por acaso com o Nelson Rodrigues. Depois veio o Lamartine, e depois outro LB (Lima Barreto), então pensei: é uma trilogia carioca. Inconscientemente, fui levado ao Rio - diz ele.


Rusga com Barbara Heliodora

De estranhamento com a cidade, só a relação com a crítica de teatro do GLOBO, Barbara Heliodora, marcada, segundo ele, por "dois acidentes":
- Sabe por que ela pega no meu pé? Há muito tempo ela me convidou para ser jurado de um prêmio. Votei a favor de uma peça que depois soube que era do Dias Gomes. Ela queria outra peça, e todo mundo concordava com ela, menos eu. Na mesma época, ela fez um livro sobre os diretores do Brasil e não me colocou. Fui lá na redação cobrar. Eu era moleque e queria um lugar ao sol - conta.
Mas Antunes se define como um homem "aberto e alavancado" pelas críticas. Lembra com saudade dos críticos Yan Michalski e Sabato Magaldi, que, em um primeiro momento, negaram os processos radicais de laboratórios aplicados ao elenco de "Vereda da salvação" (1964). Na manhã da entrevista, o encenador deglutia as duras críticas de Luís Antônio Giron, da revista "Época", que acusou o teatro brasileiro de falta de criatividade "por esgotamento de inspiração ou de recursos".
- Achei a crítica genial. Não sei nem quero discutir se ele tem ou não razão. Ele nos leva todos a repensar. Temos que nos perguntar para que e por que fazer teatro. Ele me provoca, e eu quero estar acordado diariamente - afirma o diretor. Gratidão a Stenio Garcia
Após assumir que misturou "tudo o que sabe de teatro" para criar "Policarpo Quaresma", Antunes diz estar em crise, sem saber ainda que rumo tomar. Mas sua trajetória de mais de meio século de teatro mostra que esta perplexidade vai durar pouco. Afinal, é um homem que não aceita perder a capacidade de estar no palco.
- Temos uma relação viva com a plateia. O ator está no palco para doar, não para arrecadar. A única atitude digna que vejo no homem, épica, é na doação. Se é para arrecadar, você é o homem do não. A minha razão de fazer teatro é doar. Óbvio que receber aplausos e parabéns é bom. Mas essa não é a finalidade. - diz ele.
Quando Antunes discorre sobre pessoas que, de alguma forma, o inspiraram, oferece sua gratidão a Stenio Garcia e Ziembinski. O primeiro incentivou o diretor à experimentação, como assistente de direção de "Vereda da salvação". Já Ziembinski, de quem Antunes foi assistente em 1952 no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), apresentou-lhe o universo de Nelson Rodrigues.
- Stenio Garcia é um dos atores que mais admiro. Ele pode participar de tudo o que quiser da minha vida. Ajoelho e falo: "Obrigado, Stenio, você foi um cara maravilhoso na minha vida". Para Ziembinski, ia buscar café e sanduíche todos os dias, observava-o se maquiando. Nem todos puderam perceber, porque ele falava meio enrolado, meio polaco, mas era um ator extraordinário - diz.
Definindo-se como um homem do século XX, Antunes não se deslumbra com a revolução tecnológica. Nunca teve automóvel, celular ou internet (Twitter, nem pensar) e mantém uma rotina de hábitos simples, que inclui um expediente diário de mais de nove horas de trabalho no CPT, idas ao teatro - "Assisto a tudo, até para poder falar a respeito" - e leituras. Experiência humana vale mais que a teatral
Apesar de ter sido um dos fundadores do teledrama na TV, como produtor e diretor de teleteatro ao vivo nas TVs Tupi e Cultura, Antunes não se conforma com a situação atual da teledramaturgia brasileira:
- As telenovelas são um desserviço não somente à cultura, como também para essa molecada (atores). Leva-os a um naturalismo vazio, a interpretar de maneira vazia e simplesmente natural. Ser natural serve para agradar à vovó, à titia, que olham e dizem: "Que gracinha, que menininha natural!". Atores têm que tomar cuidado para não virar gracinhas. Ninguém é contra os atores fazerem TV, ganharem melhor, mas atuar não é simplesmente ser gracinha - ensina. Quando alguém pergunta como é ser um mito do teatro aos 80 anos, a resposta é enérgica e indignada:
- Odeio ter 80 anos. Odeio a velhice. O que eu gosto não é da experiência teatral, é da experiência humana que tenho por causa do teatro. Não me interessa nem o teatro. Teatro é um meio, não um fim. A vida para mim é tudo, é fundamental. Adoro o movimento da vida. O teatro é só o veículo que eu encontrei, é o meu patinete - diz.
Crédito das fotos: Eliária Andrade e divulgação.

Um comentário: