segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Sevcenko sobre Policarpo de Antunes

Lima Barreto atual e urgente

Nicolau Sevcenko

ABSURDISMO
A montagem de Antunes desse autêntico documento fundador da República é estarrecedora. Ele concentra no palco como que um sumário das artes cênicas do século 20. Desde as origens do teatro e do cinema modernos, do “Ubu Rei”, de Alfred Jarry, ao Carlitos de Charles Chaplin, passando por Pirandello, Samuel Beckett, Peter Brook e Leni Riefenstahl (em revisão paródica), desfila situações absurdistas em que a promessa da modernidade se configura como a mais atualizada versão do velho inferno. O desejo obstinado de acreditar num ideal retórico e farsesco, por mais que a realidade lhe imponha decepções e desencantos, por mais que seus líderes se revelem deslavados crápulas, o arrasta para um fim tão trágico como inevitável.
O que mais encanta e hipnotiza é que Antunes é um mestre do coro. Há diretores que se exprimem sobretudo através da força dos personagens. Outros introduzem sua visão mais pessoal pelo encaminhamento da trama dramática. Antunes se comunica predominantemente pela energia flamejante do coro, suas montagens são literalmente coreográficas. Essa é a fonte mais original do teatro. Na encenação grega, os protagonistas são cruciais para desencadear o enredo dramático, mas é o coro que realiza o mistério da transubstanciação dionisíaca. É assimilada no coletivo que se dá a ressurreição de Dioniso em cena, não na circunstância particular vivida pelos atores.
Na montagem do “Policarpo Quaresma”, Antunes realizou esse ritual com uma eficácia sublime. O coro, ora travestido em camisolões de loucos do hospício, ora fardado como recrutas do Exército, ora como fiéis devotos do grande líder carismático, ora como militantes agitando bandeiras cegamente, como no “Triunfo da Vontade”, de tão trágica memória, fornecem o retrato mais cru e realista que se possa imaginar da República brasileira, desde a fundação até esse ano da graça de 2010.
A certa altura as formigas surgem como o bode expiatório, o inimigo público que deve ser destruído sob as botas para desentravar a prosperidade geral. O coro é tomado de um transe unânime e agressivo, pisando e gritando compulsivamente, como num culto de exorcismo. Policarpo conclui a cena com um sapateado mortífero, acompanhando os acordes do Hino à República. Nunca Lima Barreto foi tão atual. Nunca esteve tão vivo. Nunca foi tão urgente.