quinta-feira, 3 de junho de 2010

Policarpo Quaresma, do CPT

Eduardo Araújo, do blog revide
01.06.2010


A grata surpresa de ver em cena diversos atores, em tempos de tantos monólogos. É que quero ver o balé, a contradança, a movimentação ativa e pulsação da vida posta em cena, do palco e seu impacto, o contracenar. Os ternos negros dos homens, as claras roupas das damas, e já estamos num novo século. Tudo é limpo no tablado do Antunes, tudo é dado por objetos mínimos, que entram e saem, por figurinos precisos, e pelos corpos.

Eu queria era saber não só o nome do Lee Thalor, mas dos demais, pois se o trabalho dele é puro primor, o desempenho de tantos outros atores mereciam crédito. Tinham que pôr no jornal os rostos, com legenda e creditar: a voz do cantor de modinha, o sapateado coletivo, o tango e seus rodopios, a preta-velha meio-senil e de jacosas canções, a dicção incrivelmente impostada do especialista e dos políticos, aquele outro ator cujo corpo desliza sinuoso, todo pura ironia física. Mas a gente vai entender que a peça é esse todo coeso, articulado e belo. Eu vejo ali a mão do rigor do Antunes, um outro tipo de teatro político mas sem bandeira, posto que alinhava uma peça onde o Brasil-que-agora-vai (da República recém-fundada) pisca para com desconfiança para o Brasil-que-agora-acha-que-está-indo (de hoje). Antunes faz dançar nossas ingênuas crenças, utopias, o bonito sonho lesado de Policarpo na ironia difícil de Lima Barreto.

No entanto, a batuta de Antunes não pesa, não há no ator as cordinhas que vejo no trabalho de diversos diretores; pois em Policarpo cada ator mostra-se presente inteiro, dando-se ao melhor entendimento do ser que encena. Cada um está todo, na composição, sem despencar do papel, sem afrouxar a representação. Há rigor mas não vejo rigidez. O corpo flui com naturalidade, como se não houvesse marcas, como se não fora meticulosa a coreografia dos passos, no palco limpo, afora seus confetes, nuvens de fumaça (um lindo efeito cênico) feito com talco, no ar.

Em Policarpo Quaresma tudo é exato desde a primeira sílaba. E eu confesso o impacto que tive ao ouvir a dicção daquela atriz que faz a noiva que enlouquece, que sem ser linda, fica a mais linda mocinha destinada ao melancólico fracasso. A voz dela, de abrir espaços, vaguidões, de dar a dimensão de um tempo que não há mais. E há ali atores que souberam trazer na voz um modo de ser que não há mais, uma nostalgia que aparta o tempo da peça do nosso tempo. Estamos diante de uma representação, e por isso afrouxam-se as coordenadas da trama do romance de Lima Barreto, cuja adaptação permite-se infiel (até no desfecho), mas que mantém intacto as grandes passagens fulgurantes, simbólicas, como do ataque das formigas.

Adaptando uma obra em que humor, sarcasmo e melancolia se somam para desvendar um Brasil que se inaugura com reconfiguração de forças já viciadas, Antunes opta por compor quase um musical, mas não sei que ponto possa (como li) confundir-se com chanchada, onde, até onde alcanço, o enredo diluía-se ante a música e a mise en scene. Em Policarpo, o tom nunca é absolutamente caótico, se há cortejos, bailes, noivados, batalhas, corsos de loucos, sapateados, tangos, tangolomangos, se organizam com beleza e nunca se perdem sem significação para o conjunto (e o que se conta/encena). Há, aliás, momentos de bela quietude e lirismo. Policarpo Quaresma é uma peça que faz também por esquetes, cenas dinâmicas que se desarmam em passagens poéticas que remetem ao Amacord de Fellini, até pela trilha da peça à Nino Rota. É um pulsar de situações cômicas, patéticas, líricas, surreais, alegóricas. O compromisso nenhum com resconstituição de época, de panfleto, embora se demore - talvez em demasia - no impacto da violência da guerra, na estupidez do poder, na explicitação do desencanto (que sim, está no livro), de um Quaresma que toma consciência de seu idealismo sincero frente ao nacionalismo oportunista e hipócrita dos políticos, o ufanismo cego ao qual a massa adere.
Bonito demais o encadear de hinos do Brasil, tudo evocando crenças desfeitas, uma ingenuidade perdida, uma ironia grande com o presente em que se descrê do coletivo, da idéia de nação só recuperada em épocas de Copa, com o futebol. Mas não é disso que trata a peça, da volubilidade de nós brasileiros em relação ao país. Do fracasso das crenças nas virtudes da terra, na validade das ações, no puramente nacional (que não há); crenças que desabam, no amor, na pátria, no olhar ingênuo em meio ao mare magnum das transformações.
Partindo da alegria rumo ao desencanto; do delírio de felicidade à tomada de consciência; da eloquência inicial à voz que se silencia no ruir das esperanças (no grito da noiva desamada / no Quaresma lúcido e calado à força), a montagem do CPT não nos reserva um desfecho moral, um ensinamento apreensível. Não denuncia, não levanta bandeira - talvez sim, contra a politicagem corrupta e oportunista. Mas é uma peça sem vitória, sem solução fácil, pois ainda que Quaresma termine um Quixote lúcido, suas batalhas perdidas nos enterram na desilusão do quão pouco somos diante de um país cujo destino não está mesmo na mão de nós cidadãos.

Só o fato de existir um CPT é que nos lembra que sim, o Brasil é por demais interessante. Para além da nossa impotência e o desmando dos poderosos, há sempre algo que se articula, brilha e nos revela com o uma nação com artistas talentosíssimos, que com originalidade revelam/desvelam um tanto mais o que somos.

Com gestos que parecem mágicos, cores sutis, objetos mínimos, os atores do CPT fizeram da ida ao teatro uma arrebatadora forma de felicidade.

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