Por Natalie Pascoal, atriz do CPT/Grupo Macunaíma
Assim como os textos de Nelson Rodrigues quebram com o entendimento comum da realidade, contendo uma diferente noção de tempo, espaço, causa e efeito e buscando o homem no macro, na sua essência, a encenação de Antunes Filho para a peça “A Falecida” não poderia ser diferente. Ele coloca a vida caótica e entrecortada como o fulcro da estética da peça, que vem como inovação de todos os seus trabalhos já realizados. A proposta traz misturas de tempos e espaços, fazendo com que aos olhos do público se transforme em um verdadeiro holograma, como se fossem folhas de transparências sobrepostas umas nas outras. Personagens dividem o palco sem interagirem: se cruzam e não se olham, falam ao mesmo tempo e não se escutam, uma cena imbrica na outra e como pano de fundo, um bar , assim como um visto nas ruas, cheio de clientes, especialmente em um dia de calor, é mantido em cena durante toda a peça indicando uma teia temporal e espacial. Cada integrante deste bar traz consigo uma história e um caráter não desenvolvido e devidamente exposto, mas que está, de alguma maneira, presente o tempo todo e apenas a indicação destes seres já proporciona à peça um universo de realidades múltiplas convivendo juntas num mesmo espaço, o palco. Em meio a este bar, surgem os ambientes da peça demarcados somente pelas ações das personagens que transitam se destacando do mesmo modo que uma estampa colorida em um tecido preto e branco, podendo ser elas, desta forma, uma representação de todos que nele estão, como se Zulmira, Tuninho, Timbira, fossem uma daquelas pessoas sentadas naquele e em tantos outros bares. Diante de tantas informações sonoras e visuais, o público como expectador, ou até como parte integrante de todo o cenário, terá sua atenção “sacudida” e será levado de um acontecimento ao outro sem que perceba e sem que tenha tempo de análises.
Ao mesmo tempo em que aparentemente tudo se coloca de forma simples e corriqueira, feito apenas com algumas mesas, cadeiras e atores, um turbilhão de imagens, sensações e movimentações ocorre na encenação que aparece como imagem da vida cotidiana onde somos bombardeados por tanta informação: seja na rua, quando estamos andando e milhares de coisas estão acontecendo a nossa volta como um assalto, uma pessoa gargalhando, carros passando, criança chorando; ou, seja em ambientes fechados, onde temos a televisão que é uma fonte de informações rápidas que podem mudar com um simples toque no controle remoto ou por um corte de comercial. Somos rodeados por tantas coisas que não temos tempo de aprender e olhar para nenhuma delas, quando focamos em algo logo somos interrompidos, cortados. Vivemos viciados em um dia-a-dia frenético, percebemos tudo e nada ao mesmo tempo, não se tem mais caminhos a percorrer, não se tem mais tempo nem distância, tudo acontece ao mesmo tempo, tudo está pronto e ao nosso alcance em um “piscar de olhos”. Participamos muitas vezes de ações que não são de vontade própria, que não são nossas, mas sim de interferências que acabam sendo incorporadas e que dão a ilusão de uma autenticidade. Comemos à frente da televisão, falando ao telefone e anotando algo sem perceber que estamos picotando nossa vivência de sensações. A completude de cada momento não existe mais, até mesmo nossos sonhos, nosso poema, são entrecortados e viciados pelo que vivemos, não temos mais espaço para criar e voar em nossa imaginação e nem sentir o que está tão próximo de nós.
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